domingo, 2 de novembro de 2008

NISE DA SILVEIRA

NISE DA SIVEIRA
Asas da rebeldia

Primeiro frustrou a mãe que queria ver a filha única pianista como ela - Nise da Silveira desafinava. Na faculdade era a única mulher no meio de 157 homens. Virou psiquiatra e continuou desafinando o coro das correntes tradicionais. No Estado Novo foi presa. Saída da prisão, quis dar asas aos loucos. No lugar de eletrochoques, deu papel e tinta aos internos do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio. Conquistou a admiração de Carl Gustav Jung, o fundador da Psicologia Analítica. Passou a estudar mitologia e decifrar nas pinturas dos esquizofrênicos a linguagem universal das imagens. Criou o Museu de Imagens do Inconsciente. Fundou a Casa das Palmeiras, onde doentes são medicados à base de criatividade. E agora aos 93 anos, acaba de lançar um livro sobre uma de suas maiores paixões: gatos.


.Tudo bem?
. Tudo bem mal.
Com essa resposta seca, balde de água fria em qualquer interlocutor, Nise Magalhães da Silveira inicia a entrevista. Depois lança um silêncio que não quer ser interrompido. Quem sabe um pouco do temperamento desta alagoana de metro e meio, psiquiatra e humanista de inteligência excepcional e uma das principais disseminadoras das idéias do analista suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) no Brasil, não se intimida com suas primeiras afirmações cortantes. Não se constrange com o proposital silêncio. Reconhece ali um estilo - Nise da Silveira mostra um tesouro para quem se dispuser a cavocar fundo o seu terreno. Tem ouro debaixo das camadas superficiais de indelicadezas, trocadilhos sarcásticos e sinceridade ao mesmo tempo desconcertante e adorável. A doutora Nise, como é chamada por todos, fala exatamente o que pensa. A mulher que começa dizendo que as coisas não vão bem acabou de lançar mais um livro, “Gatos - A Emoção de lidar”, foi homenageada no 1º Encontro Latino-Americano de Psiquiatria Analítica, realizado em abril em Punta Del este, no Uruguai, como introdutora da psicologia de Jung na América Latina. Tem 93 anos e motivos de sobra para estar bem. Mas acabou de perder “um grande amor” - o gato Carlinhos, companheiro de 18 anos, e personagem do último livro. “Tudo bem mal”.
Nise da Silveira passou os últimos meses com o gato Carlinhos aninhado em seu colo e mergulhada no livro. Já escreveu outros quatro, “Jung, Vida e Obra”, de 1980, “Imagens do Inconsciente”, de 1979, “O Mundo das Imagens”, de 1992, e “Carta a Spinoza”, de 1995. Contou com a colaboração da psicóloga Vera Macedo, que passou os originais para o computador (ou “a .d.”, “aparelho diabólico”, segundo Nise). Alguns dos capítulos discutidos e ditados, Vera diz que saíam da cabeça de Nise praticamente com estrutura montada, sem vírgula fora do lugar. “Ela tem garra formidável para o trabalho”, afirma Vera, diretora da Casa das Palmeiras, o primeiro externato do Brasil para doentes mentais, fundado em 1956. O embrião dessa instituição foram os ateliês de arte introduzidos dez anos antes no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro. Traz ainda a impressão digital de Nise o Museu de Imagens do Inconsciente, criado em 1952 e atualmente com cerca de 300 mil trabalhos em seu acervo.
Nise fala devagar e locomove-se em uma cadeira de rodas. É presença aguardada todas as quartas-feiras nas reuniões do grupo de estudos C.G.Jung, que acontecem à noite no andar de cima do seu apartamento no Flamengo (o grupo existe desde 1955 e edita a revista “Quaternário”). Ela é lúcida, tem vivacidade nos olhos e mantém o espírito combativo que se tornou sua marca-registrada. Está revoltada com o decreto proposto pelo prefeito do Rio Luiz Paulo Conde, para limitar o número de animais que se pode ter dentro de casa. Em 1990, botou no trombone contra a farra do boi, no litoral se Santa Catarina. O seu grupo de estudos fez pressão, produziu um livro sobre aquela prática de tortura e a farra foi proibida. É assim que se manifesta o “anjo duro” (definição que deu a ela o psicanalista Hélio Pellegrino, morto em 1988).
Nise tem um fino senso de humor e a capacidade de divertir-se com o personagem por ela criado. Mostra orgulho em dizer que jamais se filiou a uma instituição psiquiátrica. “É melhor ser um lobo magro e solto do que um cachorro gordo de coleira”. No grupo de estudos, todos gostam de contar parte de sua história. Ela estimula a participação: “Quantos meses mesmo passei na prisão”?. Responde o psiquiatra Agildo Vilaça: “Quinze, chegamos a um consenso”. Tem coisas de sua vida que só sabe a “mulher do saco”, como ela apelidou a advogada Tânia Mitidieri por guardar tudo o que sai a seu respeito.
“O melhor da doutora Nise é a sua capacidade de ouvir o próximo. Como Jung ela teve humildade para aprender com os esquizofrênicos”, diz Franklin Chang, presidente da Casa das Palmeiras. “Quando conversa, é como se o seu centro ativasse o centro da outra pessoa. A doutora traduz co perfeição o ditado zen que diz ‘onde o mestre passa sempre nascem flores’. Hoje ela é um mestre no sentido oriental, as coisas vêm até ela, sem que precise fazer esforço”.

Marie Claire - No último livro dele, “Memórias, Sonhos, Reflexões”, Jung afirmava que, aos 83 anos, sentia que sua vida era a história de um inconsciente que se realizou. A senhora tem hoje a mesma sensação?

Nise da Silveira - Não. Ainda não. Sou uma pessoa em busca da realização do self. E não terei tempo para chegar lá. Mas tive convivência estreita com uma pessoa que, como Jung, realizou o self, o centro ordenador da personalidade. Foi uma de suas principais colaboradoras, a analista Marie-Louise von Franz. Colaborou com Jung em “O Homem e seus Símbolos”. Ela morreu no dia 17 de fevereiro, com 83 anos, sofria do mal de Parkinson. Marie-Louise foi minha amiga e analista. O que me atraia nela era a atitude em relação ao animal. No meu primeiro dia de aula no Instituto C.G.Jung de Zurique, entrei numa sala onde uma senhora dava aula com seu cachorro debaixo da mesa. Era ela, a fundadora do instituto e já uma renomada estudiosa no campo da alquimia. Eu me espantei com a presença de um cão ali, talvez fosse até preconceito. Mas quem é que, numa universidade brasileira, levaria um cachorro para a sala de aula?

MC - Um dos livros dela mais conhecidos no Brasil é “O Caminho dos Sonhos”, que foi baseado em uma pesquisa de mais de 60 mil sonhos.

Nise - Marie-Louise era uma caçadora de sonhos, já quase no fim, foi orientadora de um amigo muito querido, o analista Franklin Chang, presidente da Casa das Palmeiras. Ela tinha se negado a orientar as pesquisas de Chang sobre a relação da alquimia com a psicologia. Estava muito doente. Mas voltou atrás depois que ele contou um sonho em que via no espaço uma pedra repleta de inscrições alquímicas. Ela aceitou então orientá-lo. Ficou claro que o inconsciente tinha se manifestado. E quando o inconsciente se manifesta, não se pode dizer não.

MC - A senhora também dá muita atenção aos sonhos?

Nise - Dou... outro dia recebi em casa a visita de um índio xavante. Ele sonhou com a avó morta. No sonho, ela pedia para ele vir a minha casa só para dizer isso: ‘Venha morar na estrela vermelha’. Achei aquilo tão bonito.

MC - Quais as outras pessoas marcantes em sua vida?

Nise - Se tivesse que escolher alguns nomes... Em primeiro lugar meu pai, Faustino Magalhães Silveira. Ele era um professor de matemática co uma bossa artística muito forte. Lia muito, Machado de Assis, Spinoza. Também escrevia para o jornal do irmão dele. Meu tio foi o fundador do “Jornal de Alagoas”, depois vendido para o Chateaubriand. Meu pai era um homem pouco pragmático, como eu, que até hoje não sei contar dinheiro. Morreu um mês depois que me formei em Medicina em Salvador. Tivemos que vender tudo, até os dois pianos de cauda da minha mãe foram embora. Ela foi morar com o pai e eu sai aloucadamente de Maceió. Fui desembestada para o Rio de Janeiro. Naquela época eu era uma idiota completa. Mas por meio de um anúncio de jornal fiquei conhecendo uma pessoa fabulosa. Estava procurando um quarto barato para alugar, fui parar na casa de Zoila de Abreu Teixeira em Santa Tereza, no Curvelo. Ela tinha cinco filhos, mas acolhia todo mundo. Era um ser extraordinário. Quando fui presa, em 1936, ela se fazia passar por minha irmã para me levar comida. Ela se arriscava, trazia bilhetes de Mário {o médico sanitarista Mario da Silveira, marido e primo de Nise, morto em 1986} costurados na bainha da saia. Zoila participava do “Socorro Vermelho”, organização de solidariedade aos presos políticos. Meu pai e ela foram pessoas muito marcantes para mim.

MC - E Jung?

Nise - Ah, mas Jung é superterreno. O encontro com Jung, com a psicologia junguiana, foi sem dúvida um dos mais importantes na minha vida. O primeiro contato foi por meio de uma carta enviada em 1954. Eu estava intrigada com os círculos pintados pelos esquizofrênicos que freqüentavam o ateliê de Pintura do Engenho de Dentro. Esquizo, no grego, quer dizer separado, partido. Mas os doentes estavam pintando formas circulares ou tendendo ao círculo. Fiquei intrigada. Como uma pessoa, assim em pedaços, poderia estar reproduzindo tão bem um símbolo da unidade? Mandei fotografias para Jung e perguntei se aqueles círculos seriam mandalas. Recebi uma resposta da sua secretária dizendo que Jung agradecia as mandalas. Portanto, eram mesmo mandalas. E o que elas significavam? De modo simples, o processo de reestruturação da psique dos esquizofrênicos. O inconsciente profundo estava mandando um símbolo da unidade para reconstruir a personalidade cindida. As mandalas simbolizam o potencial autocurativo dos doentes. Foi assim que vi um caminho novo para o estudo da esquizofrenia.

MC - O quadro que a senhora tem na parede, um dedo apontando para uma mandala, é desse período?

Nise – É a ampliação do indicador de Jung apontando para uma mandala, que foi feita por um doente do Brasil. A foto foi batida pelo pintor Almir Mavignier, o meu primeiro colaborador no ateliê de pintura, por ocasião de uma exposição de produções plásticas de esquizofrênicos realizada paralelamente ao 2º Congresso Internacional de Psiquiatria. Tem a assinatura de Jung, preciosa, logo depois ele morria. Conheci Jung em 1957. A ele devo todos os meus estudos de mitologia, “a linguagem do inconsciente”. Quando fui visitá-lo em sua casa de campo, confessei que me faltavam elementos para ir mais longe com o meu trabalho no Engenho de Dentro. Ele me perguntou: “Você estuda mitologia”? Eu nunca tinha estudado mitos, até hoje não se ensinam mitos no Brasil. Jung disse que sem conhecer mitologia eu não compreenderia os delírios dos doentes e nem o significado das imagens por eles pintadas. Aprendi uma grande lição.

MC - Qual o primeiro mito que a senhora decifrou entre os internos?

Nise - O tema mítico de Dafne. Ele estava sendo revivido por Adelina {personagem do livro “Imagens do Inconsciente”}. Adelina, moça simples, tinha uma mãe dominadora. Ela proibiu a aproximação da filha com o primeiro homem de sua vida. Adelina ficou muito triste, depois parecia conformada, mas era só o começo da cisão. Analisando as pinturas que ela fazia encontrei paralelos com o mito grego em que a ninfa Dafne foge da paixão de Apolo para ficar perto da mãe, a Terra. A mãe a transforma numa planta. Adelina não soube se desvincular da mãe, tinha a identidade confundida com a figura materna. Chegou a estrangular uma gata, atitude que pode ser interpretada com o aniquilamento dos instintos femininos. Pintava com freqüência uma mulher saindo dos galhos de uma árvore. Adelina dizia que queria ser uma flor.

MC - A biografia que a senhora escreveu sobre Jung já está na 16ª edição e até hoje é uma referência para estudantes de psicologia.

Nise - É um livro introdutório, despretensioso. Não gosto do termo biografia, quem se mete a escrever sobre uma pessoa modifica o que ela viveu. Toda biografia mente. O autor não fica apagado.

MC - Tanto que num dado momento daquele livro a senhora aconselha o leitor a trocar os manuais de psicologia por clássicos da literatura.

Nise - Quanto atrevimento! Eu sou atrevida. Mas é verdade. Seria mais proveitoso substituir certos trabalhos de psiquiatria pela leitura de “Em busca do Tempo Perdido”, de Proust. Ou pelo menos livros de Machado de Assis, meu primeiro grande mestre e psicologia. Eles analisam com mais profundidade a alma humana.

MC - A senhora acabou inventando uma nova gramática na psiquiatria brasileira. E nunca escondeu a implicância com termos técnicos...

Nise - Como terapêutica ocupacional, expressão pesada como o tijolo. Prefiro dizer “emoção de lidar”, usada por um dos clientes da Casa das Palmeiras, Luiz Carlos. Numa das atividades ocupacionais, ele manipulava uma lã e dizia que era macia, gostosa. Dizia que sentia “emoção de lidar” com o material. Pronto, adotei. No subtítulo do meu último livro uso a expressão. Tanta coisa boa acontece até hoje lá na Casa das Palmeiras. É um espaço muito aberto. Ninguém usa crachá, jaleco. Os doentes se quiserem saem para tomar cafezinho. No final d dia, voltam para suas famílias. Falo muito em “afeto catalisador” em meus trabalhos, metáfora química para a relação de afeto entre terapeuta e cliente. Esse tipo de amor, que vem junto com liberdade criativa, ajuda muito na cura. Outro termo que implico é paciente. Paciente está ligado a passivo, é um ser que requer tutela. Prefiro chamá-lo pelo nome, ou dizer cliente. Já pensei em substituir a palavra esquizofrenia pela expressão “os inumeráveis estados do ser”. O teatrólogo francês Antonin Artaud, que passou grane parte da vida em hospícios, dizia: “O ser tem estados inumeráveis e cada vez mais perigosos”. Veja como é forte a definição de esquizofrenia feita por um interno: “doença em que o coração fica sofrendo mais do que os outros órgãos. Por isso, fica maior e estoura”.

MC - Como foi o tempo que a senhora passou na prisão?

Nise - Sabe que foi um tempo bom? Eu me sentia bem convivendo com aquela gente. Aprendi tanta coisa na “sala 4” {cárcere das presas políticas, parte do Pavilhão dos Primários da Casa de Detenção, na rua Frei Caneca}. Convivi com pessoas maravilhosas, a “Sala 4” era uma caldeira de emoções. Maria Werneck, Olga Benário Prestes, Eneida Morais. Presenciei cenas terríveis, como quando entregaram Olga Prestes. Ela estava grávida, disseram que iam transferí-la para uma maternidade. Foi de navio para a Alemanha, para ser torturada e morta. Fizemos greve de fome. Elisa Berger, a Sabo, ocupava uma cama junto à minha e acordava de madrugada, no mesmo horário em que havia sido submetida a sessões de tortura. Eu a abraçava, tentava acalmá-la. Ferreira Gulalar e Elvira falam disso nos livros que escreveram {“A tranca do Curvelo”, de Elvira Bezerra, e “Nise da Silveira - Retratos do Rio”, de Ferreira Gullar}. Bem, eu passei uns 11 ou 15 meses na prisão. Não foi tempo perdido, aproveitei para ler toda a obra de Proust e de Freud.

MC - Por que a senhora foi presa?

Nise - E eu sei? {faz uma longa pausa e depois retoma}. Eu tinha contato com o Partido Comunista, mas não era uma ativista. Quem me denunciou foi uma enfermeira que encontrou livros socialistas na minha mesa, junto com outros de Proust, Oscar Wilde. Eu tinha passado em um concurso para médico psiquiatra, deixei o Curvelo e fui morar no hospital {antigo Hospital de Assistência a Psicopatas, Hospital da Praia Vermelha}. Fui presa sem processo, acusada de comunista, mas não existia nenhum processo contra mim. Eu era da turma da Zoila e do seu marido {Álvaro Floriano Teixeira, fundador do Bloco Operário Camponês do Espírito Santo}. Andava com gente como Otávio Brandão, comunista feroz que achava Tolstoi manso, mas no fundo era um romântico enrustido. Convivi muito com Laura Brandão, mulher de Otávio. Ela tinha uma personalidade fascinante, recitava poemas de Castro Alves nas portas de fábrica. Depois foram deportadas para a Alemanha. No episódio da prisão, o bonito foi a participação de uma esquizofrênica, que me levava café da manhã no hospital. Ela deu uma surra que quase matou a enfermeira que me denunciou. Mais tarde o diretor do hospital {Valdomiro Pires} que tinha chamado a Polícia para me levar ao DOPS, se atirou da janela do oitavo andar, mas deixa quieto, isso é outra história triste. Só tomei conhecimento da atitude da esquizofrênica depois de sair da prisão. Fiquei pensando... Como os autores daqueles livros de psiquiatria são capazes de dizer que os esquizofrênicos têm atividade apagada? Cadê o tal do embotamento afetivo?

MC - Foi na prisão que encontrou o escritor Graciliano Ramos?

Nise - Eu não conhecia Graciliano Ramos de Alagoas. Ele era do interior, prefeito de Palmeira dos Índios. Foi quando fez o relatório da prefeitura que descobriram que ele era um grande escritor. Graciliano também foi preso sem processo, suspeito de colaborar com a Aliança Nacional Libertadora. Não assisti ao filme sobre o período que passamos na prisão {“Memórias do Cárcere”, de Nelson Pereira dos Santos, de 1984}, mas o livro eu li.

MC - No livro a senhora foi descrita como “tímida, sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a escusar-se de tomar espaço”.

Nise - Tímida eu não era, não sou. Introvertida, sim. Mas quando me aborreço posso soltar os cachorros. Devo gostar de ser rebelde, eu me identifico com os marginais.

MC - Sua rebeldia já nasceu com o nome, uma homenagem à musa do poeta da Inconfidência, Cláudio Manuel da Costa.

Nise - Fui filha única, fazia o que bem entendia. Sempre tive natureza rebelde. Decepcionei a minha mãe que queria que fosse pianista como ela. Eu tinha dedos longos, mas ouvido de chumbo. Na faculdade de Medicina, fui a única mulher de uma turma de 157 homens. Mas começaram com essa história de que eu era rebelde por causa da minha resistência com o eletrochoque {na época em que reassumiu o serviço público, no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, em 1946}. Eu não suportava aquelas técnicas novas, eletrochoque, lobotomia, choque de insulina. Associava tudo com os métodos de tortura policial do Estado Novo. Pedi então para o diretor do hospital me transferir para outro lugar e ele me botou no Serviço de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico, que não tinha prestígio. Abri salas de costura, modelagem, pintura. Uns colegas freudianos diziam que eu mandava os doentes fazer garatujas. Mas aqueles “rabiscos” eram a prova de que a criatividade promove uma rearrumação no mundo do esquizofrênico. O que os doentes produziam nos ateliês revelava aquilo que eles não conseguiam expressar de forma lógica com a palavra.

MC - É verdade que a senhora se apresentou como uma estagiária no dia seguinte em que foi compulsoriamente aposentada do serviço público?

Nise - Eu fui lá e falei: “Sou a mais nova estagiária do Museu de Imagens do Inconsciente, junto com outros jovens.

MC - De psiquiatra a senhora passou a trabalhar com a arte.

Nise - Eu nunca trabalhei com arte. Eu brigo com você se escrever isso. A palavra arte tem conotação de valor, de estética. Para mim isso não importa. a pintura dos doentes é uma linguagem do inconsciente. Não tem nada a ver com arte - embora às vezes a arte apareça. Curioso que quando estava presa tinha muito medo de umburrecer, de perder a capacidade de me aprofundar. Mas vi um doente internado há 23 anos e só carregando roupa suja na enfermaria, fazer quadros de tanta beleza... Um de seus trabalhos fez parte da exposição de inauguração do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1949. Era Emygdio de Barros, hoje considerado um gênio da pintura brasileira. Foi escolhido para a exposição por um curador francês, Leon Degand, a pedido de Francisco Matarazzo Sobrinho, o Cicillo. Como é impressionante o fenômeno da conservação da criatividade... Cicillo se encantou e manifestou o desejo de comprar o quadro. E eu respondi com um final de conto de fadas: “nem por ouro, nem por prata, nem por sangue de Aragão”. Agora estão querendo de novo vender os quadros do Museu de Imagens do Inconsciente. Tenha dó, aquilo é um acervo científico, se sai alguma peça não dá mais para acompanhar a evolução dos casos em série. Interrompe-se a leitura do processo do Inconsciente.

MC - Mas a senhora sempre foi muito ligada às artes?

Nise - Tive grandes amigos artistas. O inconsciente é a mesma fonte que nutre as pinturas dos artistas e dos doentes. Só que o artista em geral tem a passagem de volta à realidade. Este quadro que você está vendo aí {um retrato de Nise} Portinari mandou um rapaz entregar em casa. Chegou ainda pingando tinta. Eu nunca posei para Portinari, o chapéu, o vestido, tudo é fantasia da cabeça dele. Sabe que um diretor do Pedro II, o doutor Carvalho, espalhou que eu levava de noite quadros de Portinari e de Di Cavalcante para o museu de Imagens do Inconsciente e dizia que eram pintados pelos doentes?

MC - Quando percebeu que os gatos e cachorros poderiam ter um papel importante no tratamento?

Nise - Não foi uma coisa assim sistemática. Sempre gostei de animais. Um dia apareceu uma cadelinha no Centro Psiquiátrico Pedro II e notei que um interno, Alfredo, ficou tomado de amor. Sugeri um nome a ela: Caralâmpia, o meu apelido em “Memórias do Cárcere”. Alfredo foi melhorando graças ao tratamento de Caralâmpia e tornou-se monitor de encadernação. Foi uma batalha tremenda deixar lá dentro os animais que iam sendo adotados pelos doentes. Ridicularizavam, sabotavam. Alguns bichos foram envenenados. O bicho-gente é o mais terrível de todos. Quando mataram um cão que estava muito ligado a um doente, um psicanalista americano, o professor Boris Levinson, comentou: “cortaram a única ‘line-life’ {elo de vida} que ele tinha com o mundo”. Levinson chamava os bichos que ajudavam no tratamento de “co-terapeutas”. Adotei o termo. Os cachorros têm afetividade estável, podem ajudar no tratamento. Já vi pessoas incapazes de organizar frases, usando estruturas verbais lógicas para conversar com cachorros. Já os gatos são excelentes companheiros de estudo, têm poder de concentração e uma percepção incrível.

MC - Pela primeira vez a senhora não tem gatos em casa.

Nise - Os gatos despertam grandes amores. Eu perdi o meu último, Carlinhos. Estou sofrendo, tenho chorado todos os dias. Eu sou de me apegar. Várias pessoas já me ofereceram outro. Mas não se repõe um grande amor assim. Por enquanto não quero. O gato ganhou a falsa fama de não ser amoroso, mas é tão amoroso. O que ele tem é a independência, a liberdade. Eu gosto do som dessa palavra, acho que é a palavra que mais gosto de ouvir, liberdade.

Lina de Albuquerque. Revista Marie Claire. pg. 34 a 40.

Um comentário:

Magda disse...

Uma bela entrevista. Uma pessoa profundamente lúcida. Parabéns. Gostaria muito de ler o livro Gatos a emoção de lidar mas creio eu ser quase
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