domingo, 2 de novembro de 2008

A PSIQUIATRIA REBELDE DE NISE DA SILVEIRA

A psiquiatria rebelde de Nise da Silveira


A discordância com o estabelecido, as circunstâncias históricas e um tanto de estudo e intuição podem levar à criação de métodos e formas de trabalho que com o tempo tornam-se revolucionários. Nise da Silveira foi alguém que deixou seu nome impresso na história da Psiquiatria por sua coragem intelectual de romper com o estabelecido e pela identificação profunda com o sofrimento humano. Pode-se dizer que essa capacidade de comover-se com o sofrimento alheio foi a chave para superar os limites que definiam os procedimentos psiquiátricos biologizantes.
Nise da Silveira, filha ilustre das Alagoas, estudou medicina na Bahia aos 15 anos, sendo a única aluna mulher na faculdade e uma das primeiras mulheres de seu tempo a se tornar médica, formando-se na turma de 1926 entre 157 homens.
Aos 27 anos foi aprovada num concurso para psiquiatra no Hospital da Praia Vermelha e dois anos depois, durante a Intentona Comunista, foi presa junto com Olga Benário, Beatriz Bandeira, Maria Werneck de Castro e Eugênica Álvaro Moreyra, vindo a se tornar uma das personagens de “Memórias do Cárcere”, de Graciliano Ramos, também confinado no presídio. Nise contou a Ferreira Gullar que esse episódio desmentiu o que ela aprendera sobre doença mental pelos livros de Psiquiatria. Tendo sido denunciada por uma enfermeira que achara livros marxistas em seu quarto, teve sua prisão decretada. Uma doente que levava café da manhã para ela em seu quarto não ficou indiferente e tentou avisá-la. Mesmo sem entender a dimensão do que se passava, pegou aos muros a enfermeira que havia denunciado a doutora.
De volta ao Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, sete anos mais tarde, Nise começa uma nova briga - a briga com a Psiquiatria. Durante os anos que passou fora do hospital, algumas novas “técnicas” como a lobotomia, o eletrochoque, o choque de insulina e o de cardiazol haviam sido introduzidas no tratamento de pacientes. À rebelde, como foi chamada pelo diretor do hospital, não sobrava lugar nas enfermarias pela discordância com os métodos adotados, sobrando-lhe apenas a terapêutica ocupacional, lugar cuidado por serventes e desprezado pelos médicos cujo objetivo não era a cura. Até sua chegada nesse espaço, os doentes eram usados em atividades como varrer, limpar vasos sanitários ou servir outros doentes. A inovação introduzida pela doutora Nise abriu a eles o caminho da expressão, da criatividade, da emoção de lidar com diferentes materiais de trabalho, o que revolucionou a Psiquiatria. A oposição ao caminho fisiológico levou-a a apostar na possibilidade de o doente, através da expressão simbólica, vencer a desordem interior e reatar os vínculos com a realidade. A criação dos ateliês de pintura e modelagem deu origem ao futuro Museu de Imagens do Inconsciente. Mas as inovações não pararam por aí. Ao encontrar uma cadela abandonada no hospital, entregou-a aos cuidados de um doente, que passou a desenvolver uma atitude de cuidador, o que, segundo Nise da Silveira, levou à sua cura. Em seguida, esse ex-interno veio a se tornar monitor no hospital. Foi possível perceber que o animal reunia qualidades que podiam fazer dele um ponto de referência estável na vida do paciente. Ela dizia que os animais tinham a função de co-terapeutas.
Diante de tamanha complexidade, decidiu ampliar seu conhecimento sobre linguagem da arte e significação das formas simbólicas e decidiu criar, com mais três colegas, um grupo de estudo de psicologia analítica, que teve importantes conseqüências para o desenvolvimento de seu trabalho. A complexidade do universo das formas pictóricas e dos inúmeros fatores que operam na atividade expressiva levou Nise a observar as mandalas produzidas por seus pacientes. Ao escrever a Jung enviando-lhe junto algumas fotografias desse material, o mestre reconheceu que ali estavam formas que manifestavam as forças do inconsciente que buscavam compensar a dissociação esquizofrênica. Mais tarde, Nise escreveu: “Eu me via diante de uma abertura nova para a compreensão da esquizofrenia”.
A criação do Museu de Imagens do Inconsciente, em 1952, e a fundação da Casa das Palmeiras, em 1957, foram conseqüência natural do trabalho realizado na Seção de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro.
No Museu foram guardados quadros e desenhos com o zelo de apontamentos sobre o processo de desenvolvimento de vida dos doentes. Por isso, ainda que muitos desejassem possuir ou comprar, Nise não permitiu que o acervo se dispersasse. A razão dessa negativa estava na importância e finalidade que atribuía àquelas obras, documentos, testemunhos e expressões simbólicas preciosas, que possibilitariam o conhecimento mais profundo do universo interior do esquizofrênico.
Por outro lado, a Casa das Palmeiras veio responder a uma das antigas preocupações com a reintegração de pacientes que recebiam alta, ampliando o método curativo das doenças mentais. Nise imaginou um espaço que funcionasse como uma ponte entre a internação e a vida na sociedade. Destinada à reabilitação de egressos de estabelecimentos psiquiátricos, funcionava como uma etapa intermediária entre a rotina hospitalar desindividualizada e a vida na sociedade e na família, com seus inevitáveis e múltiplos problemas.
Nise deixa muitas lições aprendidas com humildade de seus doentes, monitores e dos vários escritores e pensadores que leu. Citando uma frase que Spinoza lhe disse em um sonho, ela diria que “a loucura é a pior forma de escravidão humana”. E lendo Antonin Artaud - “o ser tem estados inumeráveis e cada vez mais perigosos” -, ela chegou a pensar em substituir a palavra esquizofrenia pela expressão “os inumeráveis estados do ser”. Que depois dela ainda possam ser inumeráveis as formas de lidar com o sofrimento humano.

Kátia Rubio. Psicóloga, conselheira do CRP-SP.
Psi Jornal de Psicologia CRP SP. Novembro /dezembro 1999.

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