domingo, 21 de setembro de 2008

INFÂNCIA DOPADA

Os remédios são cada vez mais usados para tratar problemas mentais de crianças


Célia conta que deixou de ser uma menina alegre em outubro do ano passado.
Tinha um colega de classe que não parava de importuná-la.
Ele falava bobagens em seu ouvido durante as aulas e também no recreio.
Um dia ela se encheu e aplicou um bofetão no insolente.
A professora não falou nada.
Os colegas riram e recriminaram sua atitude.
Foi a partir desse dia que Célia começou a ficar triste.
"Sei que não é motivo, mas foi assim que começou", diz a menina de 13 anos.
Durante uma semana, a mãe de Célia a levava até a porta da escola, mas ela não conseguia entrar.
Ficava tremendo dentro do carro.
A partir daí, deixou de freqüentar as aulas.
Durante meses, teve uma rotina de moribunda.
Só ficava na cama.
Os olhos pretos, sempre chorosos, não encaravam sequer a própria mãe.
Não lia e nem ligava a televisão.
A vaidade, uma de suas características mais evidentes, esmoreceu.
Nem banho queria tomar.
A falta de ânimo era tanta que já não comia mais.
"Não tinha vontade nem de tomar água", lembra.
Com quadro de desnutrição, a menina ficou vinte dias internada no hospital Albert Einstein, de São Paulo.
Oito meses depois do tapa no colega, Célia está melhor, mas continua triste: "Eu quero sair dessa. Quero voltar para a escola. Mas não consigo".
Os dezoito médicos consultados foram unânimes no diagnóstico: depressão.
Ela só começou a sentir-se melhor depois que a mãe venceu o medo e acatou a prescrição de um psiquiatra: hoje Célia toma dois comprimidos de Trofanil por dia e, como o antidepressivo causa disritmia cardíaca, é obrigada a ingerir uma dose de outro remédio para o coração.
Se a tristeza de Célia não tivesse acontecido nos anos 1990, a peregrinação por consultórios teria outro resultado.
Por muitos anos a depressão infantil permaneceu desconhecida.
A visão psicanalítica dominante durante boa parte deste século, recusava-se a reconhecer o distúrbio, alegando que crianças ainda não teriam "superego" maduro o suficiente para manifestação depressiva.
O avanço dos estudos do cérebro mudou essa concepção.
Convencidos de que crianças estão tão vulneráveis a deseqüilíbrios bioquímicos no cérebro quanto os adultos - nos quais desde a década de 1950 se aplicam terapias com remédios -, os psiquiatras entraram de sola no domínio das mentes em formação.
Além da depressão, cerca de outros vinte distúrbios, já são listados como problemas psiquiátricos infantis.
"Isso eliminou muito do preconceito que as doenças mentais tinham", acredita Marcos Mercadante, chefe da psiquiatria infantil da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
"Outro efeito foi acabar com a culpa dos pais, um ranço alimentado pela psicanálise".

"Idéias" - Quando completou 10 anos, o estudante paulista Pedro começou a sofrer com o que ele chama de "idéias".
"Não dá para explicar.
Eu penso umas coisas que não tem cabimento que não quero pensar.
Por exemplo, fico pensando que minha mãe é chata.
A idéia fica na minha cabeça e eu não consigo me livrar dela", conta o jovem hoje com 1.90metros de altura e 16 anos.
Pedro foi diagnosticado como obsessivo-compulsivo e começou a tomar um antidepressivo de nome Anafranil para diminuir a ansiedade e os sintomas obsessivos.
Melhorou, mas mantém a medicação para evitar recaídas.
O psicanalista infantil Bernardo Tanis reconhece que o remédio reduz a ansiedade, mas salienta: "Sozinho, não ajuda a criança a desenvolver seus recursos internos para viver".
Mesmo os mais fervorosos defensores da prática de dar remédio acham que a psicanálise ou alguma das 400 psicoterapias existentes são importantes na superação dos momentos ruins.
Tamanha flexibilidade tem motivos.
O fato de o remémio em muitos casos apresentar resultados mais visíveis e mais rápidos do que as psicoterapias não é uma prova de que as causas dos distúrbios psiquiátricos sejam neurofisiológicas.
O sistema de neurotransmissores responsáveis por todo o processo psíquico, quase sempre está deseqüilibrado num paciente em crise.
Mas a ciência ainda não sabe qo que é causa e o que é conseqüência.
O corpo influencia a mente e a mente influencia o corpo (psicossomática).
Do mesmo modo que uma alteração química pode modificar o emocional da criança, a constância de um pensamento ruim pode produzir o mesmo efeito.

Morte de Senna - O menino Fernando de 9 anos, é exemplo disso.
Ele começou a ter tiques nervosos na tarde do domingo em que o piloto Ayrton Senna morreu.
Ficou 18 horas fazendo repetidamente o som "tssk" com a boca.
Só parou depois que lhe deram um antialérgico no pronto-socorro.
Fernando brincou e estudou normalmente até janeiro deste ano, quando o avô morreu.
O que ele chama de "espirros" voltou com mais intensidade.
Uma junta médica da Santa Casa de São Paulo diagnosticou seu problema como sendo distúrbio de Tourette, uma doença psíquica que afeta uma em cada 2000 pessoas e se caracteriza por tiques motores ou vocais como grunhidos, fungados, tosse ou mesmo palavras ditas com freqüência e sem intenção consciente.
Fernando tem de interromper sua conversa constantemente para "espirrar".
Fica irritado e cansado por causa do tique.
"É muito chato", diz.
"Na escola muitos meninos gozam de mim.
Eu sei que incomoda, eu me esforço mas não para.
Quando me lembro do Senna ou do meu avô, volta forte".
Tudo leva a crer que o distúrbio de Tourette em Fernando seja um problema bioquímico.
A perda do Senna, o deflagrador.
Mas e se for o contrário?
O uso de remédios estaria, nesse caso, apenas reduzindo os sintomas, tratando a conseqüência como causa.
Não são poucos os pais que, dando-se conta dessas incertezas, preferem tentar as duas vias terapêuticasmais e voga: a psiquiatria e a psicologia.
A menina Paloma é uma dessas adolescentes multitratadas.
Ela tem um problema de nome tão desconhecido quanto o de Fernando: tricotilomania.
Aos 11 anos pouco depois de um acidente de carro que matou parentes que gostava muito, Paloma começou a chorar à toa e a arrancar compulsivamente os cabelos.
Faz terapia há cinco anos com psicólogos e toma antidepressivos há dois.
"Fiquei mais calma, choro menos, mas o negócio de arrancar o cabelo não consigo controlar", diz a jovem loira de 16 anos.
A tricotilomania começa geralmente na infância.
A pessoa não consegue resistir ao impulso de arrancar os próprios cabelos, as sobrancelhas ou os cílios.
Tem uma sensação crescente de tensão antes de começar a puxar os cabelos e sente-se relaxada e gratificada depois de fazê-lo.
Em geral, não sente dor.
"É ruim porque é feio. Quando alguma amiga pergunta por que meu cabelo é assim, mudo de assunto. Não quero que me achem esquisita", diz Paloma.

Decisão Difícil - Prescrever remédios para crianças não é uma decisã fácil.
A farmacologia conseguiu eliminar muitos efeitos colaterais graves, mas eles ainda existem.
Além disso, os remédios de uso psiquiátrico específicos para crianças são poucos.
O que os médicos fazem é reduzir as doses recomendadas para adultos.
A FDA, órgão americano responsável pela fiscalização de drogas e remédios, libera para uso em depressão infantil apenas dois medicamentos: o Anafranil e o Trofanil.
Para decidir quando devem prescrever remédios a uma criança, os médicos avaliam quanto os sintomas estão afetando o desenvolvimento, a sociabilidade, o desempenho escolar e a capacidade de criar.
Por mais que os psiquiatras tenten conferir precisão ao diagnóstico, é preciso admitir: são critérios muito subjetivos.
Quando dizer se um menino levado é simplesmente levado ou hiperativo?
Em que momento o chamado desvio de conduta nada mais é do que uma saudável manifestação de independência?
Em casosextremos como o de Marcelo, 8 anos é fácil.
Aluno de 1ª série, ele não consegue prestar atenção à aula.
Ficar sentado na carteita é é algo impossível - salta e bate o pé no chão o tempo todo.
Em casa à noite não consegue dormir.
Se pega no sono, sofre de sonambulismo.
Diagnosticado como hiperativo com déficit de atenção, Marcelo sofre de um distúrbio que afeta 3% das crianças.
Medicado, o garoto melhorou.
Não falta alarmismo às estatísticas sobre o número de crianças com problemas psiquiátricos.
Os compêndios chegam a afirmar que 10% dos meninos e meninas em idade escolar são portadores de distúrbios ou virão a manifestá-los ainda nessa fase da vida.
Nem todos freqüentarão consultórios psiquiátricos, é verdade.
Alguns, por não ter condições para tanto.
Outros por que superarão sem apoios químicos a fase de problemas.
A tendência à medicação precoee, porém, cresce e alarma.
Mesmo psiquiatras - os principais beneficiários da nova onda - vêem com excessos.
O chefe do serviço de psiquiatria infantil da Escola de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, Raul Gorayeb, por exemplo, não hesita em acusar: "Essa tendência à medicamentação tem causa ideológicas e interesseiras. É fruto da hipervalorização dos aspectos biológicos sobre os psicológicos e sociais e de um comodismo em buscar soluções rápidas. A parte interesseira é o marketing agressivo da indústria farmacêutica".

VEJA, 14 DE JUNHO, 1995. pg 66/67

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